Na França, os vinhos de uvas de origem americana são banidos, mas movimento de viticultores tenta promover a sua retomada
POR DR. JÚLIO ANSELMO DE SOUZA NETO
Hoje resumo para os leitores o intrigante artigo de Benoist Simmat, intitulado Les cépages interdits font de la résistance que foi publicado na Revue du Vin de France em março e que conta a história das variedades de uvas híbridas e americanas na França, tais como a Noah, a Clinton, Othello, a Jacquez, a Herbemont e a Isabelle (aqui no Brasil chamada Isabel). Então, vamos ao artigo.
Desde 1935, com a criação das AOC (Appellations d’Origine Contrôlée) que em 2012 se tornaram AOP (Appellations de Origine Protégée), o governo francês decretou a extinção das uvas híbridas e americanas, mas, segundo Benoist, “uma França escondida”, está trabalhando para garantir o futuro delas, em nome da ecologia e do redescobrimento de um sabor.
Um dos viticultores que faz este trabalho é Alain Déjean, dono do Domaine Rousset-Peyraguey, propriedade em Barsac, na região de Bordeaux, em que cultiva 15,4 hectares recebidos do avôcom a uva Noah (híbrida resultante do cruzamento das espécies americanas Vitis labrusca e Vitis riparia, em 1869). Ele diz que faz poda bem curta das videiras e, também deixa os frutos amadurecerem bastante, como a Sémillon, uva emblemática da região. Dessa forma, ele produz o Cuvée Oxydatif, um vinho doce inovador com 80% de Sémillon e 20% de Noah, que tem aromas de turfa e frutas secas. Ele faz também dois vinhos brancos secos: um com 50% e outro com 100% de Noah!
No entanto, seus vinhos não são encontrados em nenhuma loja, por um motivo bastante simples: na França é proibido, há 87 anos, fazer e vender vinho da uva Noah, mesmo em pequenas quantidades, devido a uma lei polêmica publicada em 1934! Ela proibiu, além da Noah, as variedades Isabelle, Othello, Jacquez, Clinton e Herbemont. Para alguns analistas, a lei visava evitar a superprodução e, para outros, tinha fins eleitoreiros em benefício da Front Populaire, coligação de partidos de esquerda que chegou ao poder e governou o país de 1936 a 1938.
PRODUTIVIDADE E FACILIDADE
As seis uvas proibidas resultam de hibridizações entre variedades da espécie européia Vitis vinifera e variedades nativas da América do Norte, como a Vitis labrusca, Vitis riparia e Vitis bourquina. Elas são resistentes, produtivas, fáceis de cuidar e serviram para repovoar as regiões vitícolas após a grande crise da filoxera no final do século XIX. Entretanto, entre as duas Guerras Mundiais, elas foram acusadas de serem ruins e de literalmente enlouquecerem quem bebia seus vinhos. Segundo Hervé Garnier, presidente da Association Mémoire de la Vigne (Associação Memória da Vinha), tratava-se de lutar contra os riscos de superprodução e manter os preços do vinho em patamar elevado favorecendo os grandes comerciantes que colocavam em seus vinhos mostos da Argélia e do Sul em detrimento das vinhas de todas as províncias da França. No entanto, as uvas proibidas nunca desapareceram, persistindo em “zonas de resistência”, como na região de Cévennes (montanhas no centro- -sul da França), Île-de-France (região metropolitana de Paris), em Vendée (no Vale do Loire), no Jura (região vizinha à Bourgogne e na fronteira com a Suíça), em Corrèze (região a leste de Bordeaux) e em Ardèche (região no sul, situada entre Lyon e Montpellier).
Há três décadas, a Associação de Hervé Garnier vinifica, todos os anos, cerca de mil litros de vinho feito com a uva Jacquez de Cévennes e, como não pode vendê-los, as garrafas produzidas são bebidas nas festas locais ou deixadas nas caves para serem presenteadas aos amigos ou “trocadas” com caminhantes, turistas e curiosos. Até profissionais famosos gostam desse vinho, como um dos cogestores do célebre Domaine Romanée-Conti que recentemente serviu uma destas garrafas “proibidas” à sua mesa!
Esse é mais um absurdo dessa legislação jacobina, sempre defendida pelo governo, não importa o que aconteça. Gilbert Bischeri, vinicultor amador e proprietário de um conservatório de uvas proibidas, diz: “Se você possui alguns pés dessas uvas, tem todo o direito de fazer vinho para a família, para consumo amigável ou associativo!” Ele é fanático pela uva Clinton e criou o primeiro conservatório dessa variedade “esquecida” em Aujac, no Departamento de Gard (na região de Occitanie, vizinha da Provence). Ele se diverte dizendo: “Aqui não dizemos ‘vinho’, dizemos simplesmente ‘Clinton’!”
Na década de 1950, ocorreu uma segunda proibição de dezenas de variedades de uvas alternativas consideradas “não autorizadas” ou “esquecidas”, porque nunca constaram da lista oficial editada pelo governo francês. O conservatório de Gilbert Bischeri em Aujac contém as variedades Concord, Baco Noir, Cunningham, Muscat Bleu, Plantet, Tressalier, Gros Noir. Lucie-Kulhmann e Alain Déjean também cultivam em Barsac a rara Aranjat, também proibida, e que dá um bom rosé!
APENAS 40 VARIEDADES
Uma França de entusiastas esforça-se para conservar, duplicar, explorar, vinificar e engarrafar estas uvas proibidas das quais o governo francês não quer nem ouvir falar, em nome da ideia de racionalização das vinhas francesas que, desde o Pós-Guerra, passaram a ser dominadas pelas castas “estrelas” que se tornaram referências ao longo das décadas, como Cabernet, a Chardonnay, a Syrah e a Merlot. Hoje, 90% das vinhas francesas são plantadas com apenas 40 variedades de uvas!
Esta viticultura oculta fascinou Stéphan Balay, nascido no sul da França e que via seu pai bebendo Clinton “contrabandeado”. Em 2019, ele realizou um notável documentário, Vitis Prohibita (disponível nos sites vitis-prohibita.com e www.fruitsoublies.org), que causou rebuliço, e já prepara a continuação da obra. Segundo ele, cada vez que apresentava o filme em algum lugar, pessoas que o assistiam diziam que eles próprios estavam cultivando Noah ou Jacquez. Ele filmou na Romênia, Itália, Áustria e viu que todos os viticultores europeus estão sujeitos à mesma proibição dessas variedades de uvas e, embora sejam muitos, estão isolados e trabalham com discrição.
Na verdade, é impossível saber o número de vinhateiros que se dedica ao cultivo das proibidas para encontrar gostos originais, como exclama o “alquimista” Alain Déjean: “A Noah lembra massa de modelar e meu vinho doce tem gosto de ostra”. Ele diz que deixou um barril a céu aberto por oito anos para obter esse resultado. Sébastien Tan, viveirista orgânico de Béziers, na região de Occitanie, explica: “A Isabelle é uma casta que desenvolve um forte sabor de morangos silvestres, um marcador de sabor nos Estados Unidos, mas que aqui surpreende agradavelmente”. Ele é um dos poucos a comercializar mudas destas castas “alternativas” pelas quais há clientes cada vez mais interessados. Uma muda de Jacquez ou da rara York Madeira (conhecida no Brasil como Bordô ou Folha-de-figo) custa 12 euros! Uma muda de variedade Vitis vinifera custa 1,5 euro!
INEXISTENTES
Nem todos os viticultores ativistas das “esquecidas” nasceram dessa última onda. Na década de 1980, Robert Plageoles, de Gaillac, na região vinícola do Sud-Ouest, começou a replantar as variedades Verdanel e Ondenc e foi informado que essas espécies “não existiam”, porque elas não constavam na lista de uvas da Douane! (órgão do Ministério da Ação e Contas Públicas da França que se ocupa do combate à fraude, da cobrança de direitos e impostos e do apoio à atividade econômica).
Yves Simon, proprietário do Clos de la Roque, em Saint-Ambroix, na região de Occitanie, é conhecido por produzir todos os anos o vinho L’Interdit (O Proibido), um cuvée rebelde de Clinton e Isabelle, que exala os aromas de frutas do bosque. Segundo o enólogo Jean-Benoît Goulabert, estes aromas não têm nada a ver com o cheiro desagradável de urina (ou pelo molhado) de raposa, reputação injusta atribuída aos vinhos das uvas proibidas. No documentário Vitis Prohibita, o sommelier do famoso restaurante parisiense L’Agapé se mostra bastante e agradavelmente surpreendido ao degustar o vinho Les Yeux Bleus (Os Olhos Azuis) do viticultor Lozère.
Mas o argumento que reacende o interesse por essas híbridas tradicionais é que elas são ideais para dar forma aos vinhos “simples” e para limitar ao máximo os insumos ou tratamentos.
Lilian Bauchet, da vinícola homônima em Morgon, na região vinícola do Beaujolais, diz que por causa de sua genética americana, essas espécies são muito mais resistentes a doenças e, às vezes, dispensam todos os tipos de tratamento! Em seu vinhedo experimental de vinte uvas proibidas, não há vestígios das doenças tradicionais. Outro exemplo: um conservatório de castas proibidas em Ardèche, onde os porta-enxertos, também de genética “americana”, não desenvolvem o flagelo do momento, a flavescência dourada (doença causada pelo fitoplasma Candidatus Phytoplasma vitis e transmitida pelo inseto vetor Scaphoideus titanus).Geoffrey Estienne, proprietário do Domaine Trimoulet, em Boussac Bourg (no departamento de Creuse, região central da França), explica que a vinificação natural é facilitada pelo grande número de leveduras presentes nas uvas híbridas e pelo maior teor de antioxidantes, o que facilita o armazenamento e evita o uso de enxofre.
No final da década de 1950, o Ministério da Agricultura da França decidiu eliminar as uvas híbridas em benefício das viníferas. Em 1958, as pesquisas do então jovem Pierre Galet, a maior autoridade da ampelografia francesa, mostraram que país tinha 250 variedades de uvas viníferas e 2.000 variedades de híbridas (americanas e franco-americanas) e dos 1,2 milhão de hectares de vinhedos, 400 mil ainda eram de plantas híbridas, dos quais 62 mil foram “banidos” a partir de 1934.
PELA EXTINÇÃO
O governo francês fez de tudo para a extinção das híbridas, através de campanhas de comunicação, prêmios para quem arrancasse as vinhas híbridas, pressão sobre as denominações de origem – mas elas nunca desapareceram! A uva Noah ainda existe por toda parte em Vendée (no Vale do Loire), a Isabelle continua a ser a uva emblemática em La Réunion (ilha francesa na costa da África, entre Madagascar e Ilhas Maurício) e a Clinton e a Jacquez ainda habitam as montanhas Cévennes. Milhares de garrafas de castas proibidas são vendidas embaixo do nariz e das barbas da Douane. Laurent Cabrol, viticultor e viveirista da empresa Viticabrol no sul do país diz, rindo: “Tenho pedidos de híbridas de toda a França, Jura, Bretanha, Nice, proibidas ou não, pois elas exigem menos trabalho!”
Essa França subterrânea espera que a legislação seja finalmente relaxada. Stéphan Balay, o já citado autor do documentário Vitis Prohibita diz que a situação é complexa, porque os procedimentos jurídicos não são iguais em todos os países.
Os vizinhos da França têm uma visão mais liberal. Na região italiana do Piemonte, pode-se cultivar e vinificar livremente a Clinton. Na região austríaca de Burgenland, foi concedida isenção até 2030 para plantar a Othello ou a Concord com a Uhudler, uma variedade local. A principal empresa de vinhos dos Açores portugueses, a Azores Wine Company, vende em lojas seu vinho da uva Isabelle, lá chamada Isabella, apropriadamente denominado A Proibida. A situação francesa das castas proibidas é tanto mais surpreendente, porque elas são cultivadas em todo o mundo, nos Estados Unidos, na Índia... e no Brasil!!! (NR.: que o artigo infelizmente não cita!)
Vincent Pugibet é um dos maiores enólogos de híbridas da França e presidente na França da PIWI, entidade criada na Alemanha e que defende o cultivo de uvas híbridas (a sigla refere- -se à palavra pilzwiderstandsfähig, que, em alemão, significa “capaz de resistir a fungos”). Ele diz, irritado: “Estamos lutando para mudar a legislação: é absurda e restringe a mudança para a biodiversidade e boas práticas agrícolas!”
É difícil fazer as coisas acontecerem. As associações de defesa das híbridas ocuparam o gabinete de Stéphane Le Foll, quando ele era Ministro da Agricultura em 2016. Uma taça de Clinton não alegrou o assistente de François Hollande, presidente francês de 2012 a 2017. No mesmo ano, uma delegação chefiada pelos eurodeputados Éric Andrieu e José Bové organizou uma prova de “vinhos proibidos” em Bruxelas. Nada aconteceu. Raras organizações interprofissionais, obviamente fora das AOP, estão planejando mudar o calendário. “O nosso sentimento é que estas castas, para além das suas qualidades ecológicas, encarnam o futuro de vinhos típicos, não fotocopiáveis, que permitem se destacar comercialmente”, defende Christian Vigne, presidente do IGP (Indication Géographique Protégée) Cévennes, que este ano solicitará autorizações de plantio experimental. A IGP Gard também está em ação. Enquanto aguardam a mudança da legislação, os enólogos dessas IGPs organizam degustações de “vinhos proibidos” para os seus clientes. De forma familiar e gratuita, é claro!
TAMBÉM NOS EUA
Lucie Morton é para a ampelografia americana o que Pierre Galet foi para aquela ciência na França e, além disso, foi aluna dele e sua tradutora. Quando o documentarista Balay veio a seu laboratório em Charlottesville (Virginia, EUA) para rodar uma sequência do Vitis Prohibita, ele ofereceu a ela uma garrafa de vinho francês feito com variedades de uvas “proibidas”, incluindo Cunningham, híbrida franco-americana, hoje desaparecida nos Estados Unidos. A ampelógrafa desenvolve um projeto de reintrodução de mudas dessa variedade, repatriadas no ano passado do sul da França para a Universidade Cornell, no Estado de Nova York, que trabalha com a videira desde os primórdios da viticultura americana, 200 anos atrás. Depois de uma quarentena longa e rigorosa, esse material está sob observação e pode ser rapidamente colocado em cultura.
E NO BRASIL
Complementando o artigo, é imprescindível lembrar que as variedades de uvas americanas e híbridas desempenham um papel importantíssimo na vitivinicultura brasileira, pois elas constituem 83% (23 mil ha) dos nossos vinhedos e com elas são feitos 79% dos nossos vinhos! Já as uvas viníferas constituem apenas 17% (4.800 ha) dos vinhedos brasileiros e originam apenas 21% dos nossos vinhos! Também é importante lembrar que as uvas Jacquez, Concord e Herbemont são muito plantadas aqui no Brasil e a uva Isabel é a mais plantada no país, constituindo26% dos nossos vinhedos!
Com o favorecimento das boas práticas ecológicas e da diversidade do gosto propiciadas pelas variedades híbridas e americanas, surge uma pergunta interessante: não valeria a pena envidar esforços para a obtenção de bons vinhos de uvas americanas e híbridas no Brasil?