Fora do circuito comercial, pequenos produtores ousam e alcançam resultados surpreendentes.
POR IRINEU GUARNIER FILHO
A crítica teatral nova-iorquina classifica de off-Broadway as peças e musicais encenados em teatros pequenos, com menos de 500 lugares, à margem dos grandes palcos da Broadway. São espetáculos de orçamentos modestos, mas de alto nível, originais e inovadores. Com custos menores, esses espetáculos podem ousar mais, correr riscos que o “teatrão” comercial da Broadway jamais correria. Alguns desses grupos nem almejam lucro –mas o sucesso inesperado às vezes os recompensa com generosas bilheterias.
Mais radicais ainda são as produções off-off-Broadway, encenadas em salas com menos de... 100 lugares. São espetáculos experimentais produzidos em alguns casos por amadores, mas com qualidade profissional.
Com os vinhos, ocorre algo semelhante. Há rótulos elaborados fora do circuito comercial das grandes vinícolas que podem ser muito bons. Não é a regra, mas acontece. Com frequência sou surpreendido por vinhos que brotam de terroirs improváveis, como o Alto Uruguai, as Missões ou o Noroeste do Rio Grande do Sul, o Sul de Minas, Goiás ou a Bahia.
Os rótulos nem sempre são os mais bonitos. As rolhas podem não ser as melhores. Mas o que realmente importa, o conteúdo líquido, esse geralmente é original e estimulante. São o que chamo de vinhos off-Broadway. Nos casos mais radicais , vinhos off-off-Broadway. Ou seja, não convencionais, um pouco rústicos, impetuosos, mas quase sempre instigantes. Claro que, para degustá-los sem decepções, é preciso uma abordagem despida de preconceitos –mas não indulgente! Vinho bom é vinho bom; vinho ruim é vinho ruim. Não se pode condescender com defeitos óbvios.
Mesmo correndo o risco de esquecer alguns nomes, eu citaria, entre os vinhateiros autorais off-Broadway e off-off-Broadway do Sul do país os gaúchos Vilmar Bettú, James Martini Carl, Lizete Vicari, Eduardo Zenker, Sérgio Malgarin, Eduardo Giovannini, Maurício Serena, Décio Weber e Carlos Boff. Seus rótulos artesanais, elaborados com muita paixão à margem do circuito comercial, têm esse atrevimento que caracteriza os bons vinhos alternativos.
Alguns desses produtores rompem abertamente com o cânone enológico e se permitem experimentar técnicas e castas pouco conhecidas por aqui, leveduras indígenas, ou mesmo barricas de madeiras brasileiras. Fazem microvinificações e blends inusitados. Outros enveredam pelo difícil caminho da produção orgânica ou biodinâmica.
À margem do establishment vitivinícola, Bettú tem vinho por mais de R$ 700,00 nas cartas de respeitáveis restaurantes do Rio e de São Paulo. Sommeliers famosos e jornalistas de todo o Brasil fazem romarias ao porãozinho de sua casa, em Garibaldi, na Serra Gaúcha, para degustar de joelhos seus tesouros. Carl testa cepas gregas e georgianas desconhecidas por aqui. Lizete, de Monte Belo do Sul, já vinificou na Praia do Rosa, em Santa Catarina. Malgarin cultiva seus vinhedos nas barrancas do Rio Uruguai, em São Borja, fronteira com a Argentina, e já teve um Tempranillo classificado entre os cinco melhores do mundo. O professor Giovannini faz vinhos em Viamão, na conturbada região metropolitana de Porto Alegre.
Nem sempre eles acertam. Às vezes pecam por falta de tecnologia. Outras vezes, pela pressa em levar ao seu público o produto semi-acabado de suas arrojadas vinificações. Mas quando acertam, é uma satisfação incomensurável –tanto para quem produz quanto para quem degusta. São vitórias de David contra Golias. Uma sensação comparável, talvez, à experimentada pelos autores de sucessos off e off-off-Broadway ante a concorrência avassaladora das mega produções da Broadway. E, assim como muitas peças do circuito alternativo foram parar na Broadway, quem duvida de que alguns desses vinhos “apócrifos” poderão um dia virar ícones nacionais?
Digam o que quiserem desses outsiders do vinho, o certo é que, com seus erros e acertos, eles estão tornando a vitivinicultura brasileira mais rica e interessante. Um brinde, portanto, aos “vinhos off-Broadway”!
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