Estudo toma conclusões apressadas e desconsidera fatores importantes na relação entre vinho e saúde: não pode ser levado a sério…
POR DR. JAIRO MONSON DE SOUZA FILHO
A notícia de que a ingestão de uma garrafa de vinho por semana causaria tanto câncer quanto o consumo de dez cigarros por semana por mulheres ou cinco cigarros por semana por homens ganhou destaque na mídia há algum tempo. A maneira como isso foi apresentado, em alguns lugares, pode levar a um entendimento errado. Com o propósito de ajudar a compreensão deste assunto, farei algumas considerações.
Essas afirmações se basearam no artigo “A comparison of gender-linked population cancer risks between alcohol and tobacco: how many cigarettes are there in a bottle of wine?”, publicado por Theresa J. Hydes, Robyn Burton, Hazel Inskip, Mark A. Bellis e Nick Sheron no BMC Public Health em 28 de março de 2019. O artigo está disponível no seguinte endereço eletrônico: https:// bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-019-6576-9
Os autores do trabalho advertem no início do artigo: “em primeiro lugar, devemos ter absoluta certeza de que este estudo não está dizendo que beber álcool com moderação é, de alguma forma, equivalente ao tabagismo”.
Neste estudo não foram avaliados os efeitos especificamente da ingestão de vinho (benefícios e malefícios) e sim o consumo de álcool e o de cigarros. O que os autores fizeram foi considerar que uma garrafa de vinho tem 10 doses de álcool, ou seja: 80 gramas. Isso é o que se encontra em 750 ml de vinho a 13,33%. Algumas garrafas de vinho, não todas, se enquadram ou se aproximam dessa definição. Os autores desse trabalho ignoraram os outros componentes do vinho. Alguns com propriedades anticancerígenas bem demonstradas na literatura médica.
Na realidade, o que o artigo sugere é que o consumo semanal de uma quantidade de álcool equivalente ao conteúdo de uma garrafa de vinho teria o mesmo efeito cancerígeno que o consumo de dez cigarros por semana por mulheres e cinco cigarros por semana por homens. É essa e não outra a única conclusão que o estudo permite chegar. Expressar isso de outra forma tem gerado mau entendimento do artigo e, acredito, não era o propósito dos autores.
Os pesquisadores consideraram como uma dose de álcool 8 gramas. A maioria dos estudos com bebidas alcoólicas considera a definição dos americanos para uma dose de álcool, que é de 14 gramas. Essa diferença é muito significativa e é necessário ter cuidado na hora de entender e interpretar os dados.
Foram analisadas as mortes relacionadas ao consumo de cigarro e ao de álcool no Reino Unido no período entre 2011 e 2014. Os dados obtidos e analisados foram para o consumo apenas de álcool e não especificamente de vinho. Desconsiderar a diferença entre as bebidas alcoólicas é conspirar a favor do erro e da injustiça. Estudos que comparam o consumo da mesma quantidade de álcool, mas com diferentes tipos de bebidas, invariavelmente mostram mais benefícios à saúde e menos danos orgânicos para o consumo de vinho e o inverso para o consumo de destilados. Vinho não é a bebida alcoólica mais consumida no Reino Unido.
Os próprios autores chamam a atenção para o seguinte fato: “os dados da pesquisa subestimam o consumo”, pois estes são subjetivos (dependem da informação dos indivíduos) e “respondem por apenas 50% do consumo de álcool, conforme dados de arrecadação de impostos pela Her Majesty’s Revenue and Customs (HMRC).“ Isso leva a pensar que o consumo de álcool era significativamente maior do que os dados utilizados nas análises.
No estudo foram levados em consideração apenas as mortes por cânceres relacionados ao consumo de álcool e ao de cigarro. “Este estudo não considera outros resultados associados ao tabagismo ou ao álcool, como doenças respiratórias, cardiovasculares ou hepáticas, caso em que as conclusões provavelmente seriam bem diferentes”, dizem os autores.
Não foi feita nenhuma correção para “fatores de confusão” que poderiam influenciar os resultados obtidos. Por exemplo: não se sabe se um grupo esteve mais exposto a outros fatores carcinogênicos que não álcool e cigarro. Nem mesmo a média de idade e o Índice de Massa Corpórea (IMC) dos diferentes grupos foram analisados. Estudos pregressos mostram que a incidência de câncer aumenta com idade e obesidade. Esses e outros “fatores de confusão” não foram avaliados no estudo, o que torna a conclusão menos consistente.
Fatos relevantes para melhor compreensão da questão foram desconsiderados. Sabe-se que, em geral, o consumo de tabaco é maior em adultos jovens e que o de álcool é maior em adultos mais velhos. A incidência de câncer nos adultos aumenta com a idade.
Os autores não examinaram o tempo que os indivíduos estiveram expostos aos fatores de risco avaliados (fumo e álcool). Isso tem grande importância nos resultados. A análise dos dados também ignorou o sinergismo existente entre o consumo de tabaco e o de álcool na carcinogênese.
Também foi desprezado o fato de existirem mais bebedores pesados e ex- -bebedores pesados entre os tabagistas. Isso precisa ser considerado para um entendimento correto dos dados.
Além de tudo isso, os autores tiveram dificuldades na avaliação dos dados estatísticos. O próprio n (número de participantes) não está claro na publicação. Não existe uma comparação entre os grupos de consumidores de tabaco e os de álcool. Isso nos permitiria conhecer as semelhanças e diferenças que poderiam ser relevantes entre os grupos estudados. Os pesquisadores nem mesmo conseguiram estabelecer um intervalo de confiança nas análises estatísticas que fizeram.
Isso tudo mostra que este é um estudo com muito baixo nível de evidência científica. Estabelecer verdades absolutas a partir dele é muito temerário e não serve aos propósitos da ciência. Tampouco colabora para o perfeito entendimento desta questão de saúde, que é tão relevante.
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