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Vinho Magazine

Vencer barreiras

Atualizado: 17 de nov. de 2020

O universo da cachaça no Brasil, pela visão de quem produz e luta pela revitalização da imagem da mais brasileira das bebidas

POR KÁTIA DO ESPÍRITO SANTO


A cachaça é um produto histórico, cultural e econômico do Brasil. Seu surgimento remonta às décadas iniciais dos anos 1500. Em sua longa trajetória, é possível destacar seus diversos consumos, costumes, sentidos e significados.

Nos primórdios, os mesmos portugueses que iniciaram a destilação da cachaça no Brasil estranharam o novo produto, afinal estavam familiarizados ao paladar do famoso destilado de Portugal, a bagaceira. Mas, sem tardar, a cachaça (aguardente da nossa terra) foi caindo no gosto, tornando-se orgulho dos engenhos, casas grandes e senzalas, tecendo seu profundo enraizamento cultural. O gosto pela cachaça foi se disseminando e o produto transitando em lados distintos, sob a valorização da classe dominante que o produzia, assim como sob os aplausos dos demais extratos sociais (inclusive os escravos) que apreciavam a bebida e a consumiam. Presente no cotidiano, nos usos, costumes, festividades, rituais religiosos, a cachaça se enraíza profundamente na cultura. É nesse amálgama plural que a cachaça vai se tornando um produto da técnica, da nossa geografia e da cultura, por todas as regiões do Brasil.

A cachaça expandiu-se com os conquistadores por terras longínquas desde seu nascedouro no período colonial, desenvolvendo-se ao longo da cultura açucareira (período em que sofreu proibições comerciais, produtivas e sociais, sendo a razão da Revolta da Cachaça no Rio de Janeiro, em 1660, a primeira intervenção organizada e vitoriosa contra a coroa portuguesa).

Nas explorações de conquistas do interior do Brasil, a cachaça rumou com os bandeirantes e alastrou-se no ciclo do ouro, aplacando o frio do trabalho em terras distantes da costa brasileira.

Ela atravessou o império, coexistindo com o café nas propriedades rurais, sendo apreciada mesmo pelas mulheres da época, em doses caseiras, firmando-se familiar, alcançando a nobreza, mantendo- se também popular.

Enraizada nos costumes e cultura do brasileiro, a cachaça foi se consagrando como símbolo nacional, oscilante entre muitas ambiguidades, mas soberana, longeva, eterna e altiva, embora por vezes nem tanto, pois o consumo de bebida alcoólica em geral implica não apenas alegria e descontração no convívio social, mas também as mazelas e desventuras, desnudando a realidade e projetando preconceitos. Sem dúvida, a cachaça sofreu (e ainda sofre) muitos estigmas, que se constroem e descontroem ao longo do caminho.

A cachaça foi estigmatizada, sobretudo, na nascente República –afeita aos valores, gostos e produtos europeus– que repudiava a embriaguez explícita e massiva dos escravos, que buscavam sobreviver à nova ordem econômica, desassistidos política e economicamente, ampliando muitos e duradouros preconceitos contra a cachaça. Demonizar a cachaça encobria as falhas da política de então, que se pretendia redentora. Na década de 1920, com os Modernistas, a cachaça passa a ser glorificada, decantada em verso e prosa, buscando-se revitalizar sua imagem.

É precisamente, a partir das décadas finais do século 20 que o segmento produtivo começa a contar com um corpo de especialistas em cachaça, para melhorias em processos, tecnologia, mecanismos de controle, com empresários interessados na qualidade comprovada em produtos de padrão seguro, dos pontos de vista físico-químico e sensorial. Ao lado da profissionalização crescente, afigura-se o contorno da cachaça como uma categoria de bebida para um mercado que já contava com consumidores exigentes de destilados.

A cachaça, bem imaterial da sociedade, era até então acessível ao consumo de forma improvisada, nas fazendas, em garrafões, com poucas marcas comercializadas formalmente. Nesse contexto de profissionalização técnica e investimentos financeiros das empresas, assiste-se a um crescente número de marcas no mercado, focadas em qualidade –uma das preocupações centrais de produtores e consumidores. No decorrer do anos 1970, houve esforços isolados de produtores fluminenses tentando revitalizar suas unidades produtivas de cachaça consoante à legislação. Mas Minas Gerais assumiu um relevante e amplo papel, organizando a associação dos produtores, em 1988, o que engendrou o desenvolvimento da produção, da indústria de equipamentos para pequenas e médias empresas, a prestação de serviços especializados e o fortalecimento do sistema de distribuição da cachaça. Os produtores de cachaça do Estado do Rio de Janeiro somente constituíram sua associação de produtores, em 1998. Em 1985, no charmoso bairro carioca do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, foi inaugurada a icônica Academia da Cachaça, bar frequentado por pessoas de alto poder aquisitivo, famosos e intelectuais, que se assumiam como apreciadores de cachaça, em meio a preconceitos sobre a bebida e aos clamores da nascente democracia. Uma nova abordagem sobre a boa cachaça de vários Estados foi edificada no famoso bar, em funcionamento até os dias atuais.

Até finais dos anos 1990, o consumo de cachaça no mercado formal era dominado por marcas de grandes volumes e baixo valor agregado, o que contribuiu para a percepção do produto como de qualidade inferior, comparativamente a outros destilados. Por outro lado, ocorria o consumo de cachaças produzidas ilegalmente, ainda que tais produtos não dispusessem de garantias quanto à sua adequação físico-química, mas ressaltassem os atributos sensoriais da bebida tradicional.



Ainda que o modo tradicional de produção da cachaça de alambique de cobre incorpore atributos sensoriais desejáveis, não tardou a se identificar uma série de defeitos sensoriais por falhas de produção e deficiências tecnológicas, e por falta de investimento em expertise. Mais tarde, as marcas de cachaça tradicionais e legalizadas passaram a ser percebidas pelo consumidor, por suas qualidades sensoriais e pela segurança dos padrões físico-químicos.

Assiste-se no Rio de Janeiro, desde 2011, a um posicionamento proativo e virtuoso em torno da cachaça. A associação dos produtores de cachaça do Estado redefiniu sua missão e visão institucional, com focos centrados em ações de qualidade da produção, certificação de produtos e, também, em qualidadeda informação e da comunicação institucional estratégica sobre as Cachaças do Rio. Nesse contexto, foi elaborado um estilo comunicacional, claro e moderno, com conteúdos consistentes sobre cachaça, bem formulados, sistematizados e apresentados (em contraste com a falta de rigor de informação circulantes –as “fake histories”– sobre cachaça, que predominavam até então). O Rio de Janeiro passou a assumir relevante expressão em comunicação, influenciando positivamente a comunicação sobre a cachaça no país, assim como dispondo ao mercado produtos e embalagens de alto padrão de qualidade, direcionados ao mercado interno e externo de bebidas para os segmentos standard de qualidade e premium. Os resultados em exportação são proeminentes, com o Rio ocupando o terceiro lugar em volume de exportação do produto (após São Paulo e Pernambuco) e segundo lugar em valores monetários de exportação de cachaça (atrás apenas de São Paulo –que contribui com 50% do total de exportação de cachaça entre todos os Estados da federação).

Cabe acrescentar que, na atualidade, a qualidade da cachaça é tópico relevante também em coquetelaria. São Paulo se destaca, com bares e bartenders renomados, que confeccionam drinques primorosos com a genuína bebida brasileira. No Rio de Janeiro verificam-se realizações para o aprimoramento da coquetelaria premium com cachaça, a exemplo da qualidade e notabilidade da consagrada culinária franco-carioca- -brasileira da capital fluminense, com identidade própria e ao mesmo tempo em padrão internacional. Minas Gerais tem dado sinais de interesse maior pela coquetelaria com cachaça.

O consumo da cachaça premium em doses e coquetéis vem se firmando junto a um público exigente, que busca experiências sensoriais e de estilo de vida, afinidades com marcas e produtos.

Conquistar uma participação expressiva da cachaça de qualidade no mercado nacional e mundial de destilados, tem contribuído para a superação de estigmas e de preconceitos. O encantamento com a cachaça vem ocorrendo junto a diferentes públicos, seja o apreciador de uísque –bebida que carrega forte simbolismo de status social e econômico–, seja o apreciador de vodca – que enfrenta a concorrência do gim e da cachaça–; sejam os especialistas –que a colocam como um dos melhores e mais sensoriais destilados do mundo, e dos quais vem recebendo elevadas premiações nos concursos de destilados.

Em síntese, os múltiplos fatores, históricos, culturais, sociais, econômicos, tecnológicos, técnicos e mercadológicos acabam por tecer na sociedade a coexistência do preconceito e da valorização da cachaça. Uma dicotomia compreensível e mais facilmente assimilável nos dias atuais de afirmação positiva da cachaça, em que consumidores exigentes buscam experiências sensoriais envolventes, estilos de vida e valores reconhecíveis e compartilháveis com as marcas de cachaça e seus produtos, interessados em ocasiões, encontros e serviços que proporcionem uma experiência agradável e repleta de informações consistentes e enriquecedoras.

Nos últimos cinco anos, a cachaça tem se consagrado em premiações nacionais e internacionais de destilados. Caminhando-se com a cachaça de boa qualidade, amplia-se a virtuose em torno desse destilado, que se elabora com tradição, inovação, arte e maestria. E, assim, a cachaça de qualidade vem se firmando como um dos melhores destilados em padrão de qualidade.

O preconceito e a sua desconstrução são tecidos ao logo da história e se enraízam na cultura e nos costumes. Superar estigmas requer práticas críveis, comunicação adequada e identidade entre marcas, produtos, serviços e clientes, ávidos por experiências envolventes e repletas de sentidos e significados.

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