Por: Irineu Guarnier Filho
O vinho não é uma dádiva da natureza. Ele é um produto da civilização
De tempos em tempos, o mundo do vinho é agitado por modinhas curiosas – que rendem muita discussão em confrarias de enófilos, blogs e na mídia especializada. Algumas até fazem sentido; outras, bem, outras são apenas… modinhas.
Assim, tivemos, nos últimos tempos, as modinhas do vinho laranja e do vinho azul. A substituição do carvalho e do inox por ânforas de argila ou “ovos” de concreto. A onda de beber espumante em taças bojudas, e tantas outras… Cofermentação, micro-oxigenação, maceração carbônica, termovinificação e outras práticas do arsenal técnico da enologia também marcaram presença nos debates de confrarias em alguns momentos.
No entanto, nenhum outro modismo tem sido mais persistente do que aquele que exalta a mínima “intervenção” do homem no processo de elaboração do vinho. Como se fosse possível ao vinho que bebemos hoje elaborar-se sozinho, por geração espontânea, ou quase isso…
Ora, para fazer vinho é preciso, antes, plantar uma vinha, já que vinhedos comerciais não brotam espontaneamente na natureza. Isso pressupõe arar a terra, adubar o solo, erradicar ervas daninhas, plantar as mudas em um alinhamento racional, fazer enxertos, orientar o crescimento dos sarmentos com estacas e arames, irrigar as plantas em alguns casos, fazer a poda seca, a poda verde, o raleio, combater doenças e insetos (mesmo que à base de produtos “naturais”), e só então colher os cachos.
Depois de tudo isso, ainda é necessário selecionar as uvas, prensá-las para extrair o suco, fazer a remontagem do mosto, controlar a temperatura da fermentação, trasvasar a bebida, estabilizá-la, filtrá-la, afiná-la muitas vezes em barricas de madeira e, só então, engarrafá-la.
Notem que nem falei do acréscimo de leveduras industriais para promover a fermentação (afinal, nem sempre se pode fermentar com leveduras nativas, não é mesmo?). Conclusão óbvia: ainda que se trate de um vinho orgânico ou biodinâmico, não seria possível elaborar este vinho sem muuuuita “intervenção” humana.
Claro que o excesso de manipulação, principalmente a química, não faz bem ao vinho e ainda faz mal à saúde de quem o bebe. Quanto menor for a adição de elementos químicos ao vinho, melhor poderemos apreciar o seu verdadeiro caráter, a personalidade de cada variedade de uva, as características que uma conferem à bebida.
Malabarismos enológicos para mascarar defeitos também são condenáveis, obviamente. Mas é preciso reconhecer que a tecnologia (agronômica e industrial) está presente em todas as fases da elaboração de um vinho, por mais “natural” que ele seja – do preparo do solo ao afinamento em barricas de carvalho. Foram mais de sete mil anos de evolução na arte de fazer vinhos para chegar aonde chegamos.
Não se faz vinho de qualidade sem considerável intervenção humana. Por mais influente que seja o terroir, é a mão do homem, do vinhateiro ou enólogo, que faz com que vinhos de uma região, elaborados com as mesmas castas, sejam às vezes tão diferentes entre si. Alguns, magníficos; outros, nem tanto.
Sem o conhecimento acumulado ao longo de séculos, e sem os recursos da moderna tecnologia, não teríamos a maioria dos bons vinhos que bebemos hoje.
O mundo do vinho está em permanente evolução. É bom que seja assim. As novidades são sempre bem-vindas. Mas certos modismos não podem ser levados muito a sério. Exatamente porque são...modismos.
A verdade é que o vinho não é uma dádiva da natureza. O vinho é um produto da civilização. Ele não se faz sem a manipulação em maior ou menor escala dos seres humanos. Portanto, com ou sem intervenção, industrial ou natural, vamos beber nosso vinho em paz com nossas consciências. O que realmente interessa é que o vinho seja bom.
Parabens , pelo texto! Fazendo uma analogia com a degustação de um vinho, diria: Estruturado e equilibrado Rs...🍷